sábado, 24 de outubro de 2009

Carregando a História sobre os Ombros

"Sinto as gotas quentes escorrerem pelas minhas têmporas, se arrastarem pelo meu rosto, e pingarem na madeira podreque se estende por muitos metros sob meus pés, formando a rampa íngreme por onde passo todos os dias. O sol escaldante cria gotículas que deixam minha nuca empapada de suor, e o peso sobre meus ombros me comprime para baixo, e não me deixa esquecer, nunca, de que é preciso seguir em frente. E acima."

O texto acima foi escrito pelo meu tataravô. Um imigrante italiano, que veio para o Brasil a procura de novas oportunidades. Mas o peso das sacas de café caiu sobre ele, e o prendeu aqui, em Santos, estabelecendo o destino de todos nós, descendentes. Toda minha família trabalhou no porto. Meu pai foi estivador, assim como meu avô foi estivador. Assim como seu pai e o pai de seu pai foram estivadores. Está no sangue, e nós, filhos e filhos dos filhos, carregamos no ombro esse fardo. Ou carregávamos, até um tempo atrás. Agora, quem ergue a maioria do peso são as máquinas.




Máquinas não se cansam. Máquinas não reclamam. Máquinas n~çao reivindicam seus direitos, pois máquinas não têm direitos. Além disso, elas carregam 40 mil sacas de café por dia. Antigamente, para subir a bordo essa quantidade se levava uma semana.

Nós, estivadores, lutamos, criamos sindicatos, e até uma federação. A federação nacional dos estivadores. Na teoria, conquistamos muitas coisas com o pagamento de salários em feriados civis e religiosos e a garantia de equipamentos de proteção para o trabalho. Mas na prática, ainda vejo vários colegas soferndo acidentes diariamente na estiva. E ainda lutamos por outros direitos, como repouso semanal remunerado e uma aposentadoria especial. Mas que de adiantou? Milhares de nós foram demitidos para dar lugar às máquinas.

A cada ano vejo metade dos meus colegas de trabalho sendo colocados na rua sem mais nem menos. O sindicato luta para garantir uma remuneração para todos que perdem seus empregos, mas são pouquíssimos desses meus colegas que conseguem algum dinheiro. A maioria continua vagando por aí, à procura de outro emprego arriscado.

Eu espero pacientemente minha vez porque sei que ela chegará. Não importa se você possui uma história no porto, eles simplesmente te descartam. Esse é o preço que nós pagamos para o país não ficar para trás na corrida do mercado internacional. E enquanto espero, faço meu trabalho. Isto é, quando tenho trabalho. É que na estiva, um dia você está empregado e no outro não. Disputamos como animais, para sermos escolhidos. Entre dezenas, poucos são chamados e se você não tem sorte, espera horas ou até dias para tentar novamente.

Nós somos colocados em uma situação sem saída. Ou fazemos trabalho exaustivo e perigoso e organizamos greves. E se organizarmos greves, ficamos sem trabalhar e sem o nosso dinheiro. Dificilmente conseguimos algum resultado, hoje. Além disso, cada vez que nós nos revoltamos perdemos pontos em relação às máquinas... É um trabalho injusto.

Nós que carregamos durante décadas a história do desenvolvimento do país nos nossos ombros, estamos sendo despejados aos poucos. Nosso trabalho, antes tão valorizado, está sendo esquecido. Se antes sofríamos mais com as cargas, pelo menos éramos importantes. A mecanização do porto nos trouxe uma desgraça pela qual nãop esperávamos. Transformou todas as nossas conquistas em atos em vão. Hoje lutamos para preservar nossa classe de trabalhadores em extinção. O tempo corrói os cascos dos navios e as máquinas que injustamente substituem nosso trabalho. Mas a memória do antigo porto de Santos ainda brilha na história dos estivadores da cidade.

Julia Ribeiro

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